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O colapso ambiental tem forma de bife

Vacas em criação intensiva nos EUA. No mundo, são abatidos 296 milhões de bovinos por ano 
(Foto: Joshua Gray)

Por Ailin Aleixo

Se você soubesse que um dos alimentos mais presentes no seu dia a dia é o responsável pela contaminação de rios, lagos e mares com detritos químicos altamente tóxicos, cogitaria parar de comê-lo?

Se mostrassem a você estudos comprovando que a produção desse mesmo alimento é a principal razão para o desmatamento do cerrado e da Amazônia, tiraria ele do seu prato?

Se provassem que, para aquela comida chegar até sua mesa, houvesse múltiplos processos de maus-tratos, manipulações genéticas e aplicação excessiva de antibióticos e hormônios em animais, pensaria em, quem sabe, diminuir seu consumo?

Se a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitisse um alerta sobre a ligação da ingestão desse alimento com o aumento da possibilidade de desenvolvimento de determinados tipos de câncer, repensaria seu apreço por ele?

Pois se você come derivados de animais — carne, leite, queijo, ovos —, pode ir pensando nas respostas, porque as perguntas são para você.

Não há nada no atual cenário global que acarrete tão variados e imensos impactos ambientais quanto o crescente consumo de carne.

É sabido o papel que a queima de combustíveis fósseis e o sistema de transporte tem no aumento da emissão de gases do efeito estufa.

Discute-se cada vez mais o uso indiscriminado de agrotóxicos e pesticidas e seus efeitos no solo, água e saúde humana.

São temas intrinsecamente polêmicos, decerto, mas impossíveis de serem evitados por governos, jornalistas e documentaristas. Apontar a ligação inequívoca da cadeia da produção de carne com as maiores mazelas ambientais da atualidade, porém, ainda é tabu. Ainda é visto por muitos como “exagero”. A humanidade está em negação — mas não conseguirá permanecer assim por muito mais tempo. 

“O consumo de alimentos derivados de animais é uma das maiores e mais negativas forças a afetar a conservação dos ecossistemas terrestres e marinhos e sua biodiversidade. A produção de gado e de grãos para sua alimentação são as maiores causas de perda de habitat” — trecho do estudo Biodiversity conservation: The key is reducing meat consumption, realizado por cientistas da Florida International University e do Department of Forest Ecosystems and Society da Oregon State University.

Para tratar desse assunto de maneira a facilitar a compreensão, esta reportagem é dividida em blocos de itens primordiais ligados ao tema. Os dados expostos foram retirados de recentes estudos científicos (sempre haverá um link de direcionamento) e entrevistas com especialistas. São eles:

Cynthia Schuck-Paim, PhD pela Universidade de Oxford (Reino Unido) em biologia evolutiva, economia experimental e etologia cognitiva, pós-doutorada em análise de dados nas áreas de ciências biológicas e biomédicas, pesquisadora em artigos publicados em dezenas de revistas internacionais e sócia-diretora da Origem Scientifica;

Carlos Afonso Nobre, climatologista doutorado em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology, ex-secretário (fevereiro de 2011 a fevereiro de 2015) de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC) e membro do “High Level Scientific Advisory Panel on Global Sustainability” da ONU;

Dr. Luiz Fernando Sella, formado em medicina pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com especializações no Wildwood Lifestyle Center & Hospital e no Institute of Lifestyle Medicine, da Universidade de Harvard, e mestre em saúde pública pela Loma Linda University (EUA);

Alessandra Luglio, nutricionista graduada pela Universidade de São Paulo (USP), diretora fundadora do Departamento de Nutrição e Sustentabilidade da Associação Brasileira de Saúde Funcional e Estilo de Vida (Abrasfev) e diretora do Departamento de Saúde e Nutrição da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).

Animais para consumo humano, ineficiência energética e contaminação da água

A população do planeta, em 2017*, passou dos sete bilhões de habitantes. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês), em 2015, abatemos cerca de 70 bilhões de animais terrestres e mais de dois trilhões de animais aquáticos para consumo humano. Para alimentar esses animais, são usadas aproximadamente 10 vezes mais calorias do que as contidas em suas carnes, ou seja, a conta não fecha.

“A produção de itens de origem animal, do ponto de vista energético, é extremamente ineficiente. As plantas convertem energia solar em energia química, comestível. Os animais precisam se alimentar dessas plantas para produzir a carne, os ovos e o leite que servirão de alimento para a população humana. Só que a maior parte da energia ingerida por eles não é transformada em carne: 90% dela é usada para o animal sobreviver, manter a temperatura corpórea etc. Sendo assim, eles consomem várias vezes mais energia do que produzem”, diz a cientista Cynthia Schuck-Paim. 

De acordo com estudo realizado pelo Departamento de Ciências Geofísicas da Universidade de Chicago, o contraste entre alimentos de origem animal e vegetal em termos de eficiência energética é enorme: enquanto a soja tem uma taxa de eficiência (a razão entre calorias produzidas e calorias utilizadas) de 415, a da carne bovina é de 6,479. “Nesse processo, o emprego de recursos naturais é imenso: uso extensivo de terra — para pastagem ou produção de grãos para ração — e de água, tanto para irrigar os cultivos quanto água para os animais beberem e para o processo de abate”, continua Cynthia.

O gasto de água seria, por si só, preocupante: o setor agropecuário é responsável por mais de 70% do consumo global (um terço disso se destina à irrigação dos cultivos para ração). O fator mais agravante, porém, é como essa água volta para a natureza: como pouquíssimos produtores de carne e leite fazem a gestão de resíduos, por ser um processo de alto investimento financeiro, os efluentes líquidos provenientes dos abatedouros têm forte carga de matéria orgânica (sangue, gordura, vísceras e restos de carcaças) e elevada concentração de nitrogênio, fósforo e produtos de limpeza. Esse líquido de descarte se infiltra no solo, polui os lençóis freáticos, aquíferos e cursos de água, desembocando em rios e, por consequência, nos mares. A questão é tão alarmante que o efeito do descarte líquido da agropecuária, somado ao uso intensivo de agrotóxicos, pesticidas e antibióticos, é a formação de mais de 115 zonas mortas oceânicas, sendo a maior delas a do Golfo do México, com 21 mil km², segundo a National Oceanic and Atmospheric Administration.

Para se ter uma ideia do montante de dejetos:

> Uma vaca leiteira produz aproximadamente 50 litros de excrementos por dia, 25 vezes mais do que a quantidade de dejetos produzida por uma pessoa;

> No estado de Santa Catarina, a emissão de dejetos e efluentes não tratados da criação de mais de oito milhões de suínos chega a mais de 75 milhões de litros por dia;

> Apenas nos Estados Unidos, a produção de excrementos de bois, porcos e galinhas é de mais de 1,1 bilhão de toneladas por ano, ou seja, mais de 30 mil quilos por segundo.

Desmatamento, efeito estufa e desertificação

Desmatamento em Santarém, no Pará (Foto: Karla Gachet / Greenpeace)

Para alimentar os trilhões de animais de corte que saciam nosso apetite, é necessário plantar o que eles irão comer. Atualmente, cerca de 30% das áreas do globo livres de gelo são usadas como pastagem (equivalente ao tamanho da África) e um terço dos três bilhões de hectares de terras produtivas da Terra é utilizado para plantação de grãos destinados à ração de porcos, galinhas, vacas, ovelhas, cabras e peixes. Utilizamos quase metade das áreas aráveis do mundo para pastagem ou produção de ração. 

Como o consumo de alimentos derivados de animais ainda está em crescimento, especialmente nos países emergentes como China e Brasil, a tendência é precisarmos de cada vez mais terra. A abertura de novas pastagens ou áreas de monocultura de grãos está avançando bastante nas florestas tropicais, especialmente na Amazônia.

“A pecuária responde por 65% dos desmatamentos na Amazônia”, diz o climatologista Carlos Afonso Nobre, que estuda há décadas o impacto das mudanças climáticas na região. “Esse setor provoca um paradoxo impossível de resolver: se a produtividade da área é otimizada e a pecuária se torna mais rentável, traz mais capital e termina por aumentar o desmatamento. Se o manejo é primitivo, como é desde a implementação da pecuária na Amazônia, as pastagens aguentam, no máximo, cinco anos e depois são abandonadas”, explica.

Nobre continua: “Analisando dados dos estudos que publiquei, chegamos à conclusão de que, com o aquecimento global, mais mudança climática, desmatamento e impacto do fogo, podemos perder até 60% da Amazônia ainda neste século. Perderíamos também 40% de 1,2 milhão de espécies (fauna e flora), das quais só conhecemos 70 a 80 mil”.

O que se vê maciçamente na televisão, porém, é que o agronegócio é a riqueza maior do Brasil, responsável por parcela significativa do PIB e por nos salvar da pior crise econômica da história. A TV Globo recheia seus intervalos comerciais com propagandas da série “Agro é pop”, dizendo ao povo brasileiro que não só somos sustentáveis, como somos um exemplo para o mundo. Será? “Cálculos realizados pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e pela Agência Alemã para a Cooperação Internacional (GIZ) apontaram que, para cada R$ 1 milhão de receita gerada pela pecuária, acarreta-se R$ 22 milhões de custos ambientais não contabilizados, principalmente em desmatamento e emissão de gases estufa”, aponta Cynthia. “Quando se diz que a agroindústria salva a economia brasileira, se está mostrando só uma parte da história: todos esses custos associados quem paga é a sociedade, seja em perda de capital natural, seja através de subsídios governamentais para essa indústria, seja com o impacto gerado no sistema de saúde pública pelo consumo de seus produtos. O custo da agropecuária é muito maior do que a renda que ela gera, mas isso é invisível para a maioria das pessoas”, explica.

Exemplo da economia de floresta em pé é o açaí: as árvores são cultivadas 
em sistema agroflorestal. A produção do açaí na Amazônia 
já movimenta dois bilhões de dólares ao ano (Foto: Pinterest)

Animais de corte, especialmente gado, jogam na atmosfera metano (resultante do processo de digestão de ruminantes e do manejo de esterco) e óxido nitroso (volatilizado de dejetos de criações e fertilizantes usados no cultivo), gases que contribuem com o efeito estufa de maneira muito mais intensa — 20 e 30 vezes maior, respectivamente — do que o CO2, produzido principalmente pelo sistema de transporte. Em 2013, o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) publicou que o setor agropecuário brasileiro contribuiu com cerca de 30% das emissões do País (84% proveniente da pecuária). Se essa conta levasse em consideração o desmatamento para expansão agrícola, o uso de combustíveis fósseis na agricultura e o tratamento de efluentes, a agropecuária brasileira responderia por 60% do total.

“O agronegócio dos países tropicais é expansionista. O setor ainda está fazendo grandes mudanças no padrão de uso da terra. Os documentos da Embrapa e do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável dizem que, até 2030, o Brasil produzirá 35% mais carne em área 25% menor, convertendo parte dela para plantação de grãos e restauração florestal. Será? No plano, não dá para criticar. Mas já estamos a 13 anos do prazo e isso não está acontecendo. Pelo contrário: o desmatamento aumentou, tanto na Amazônia quanto no cerrado. Então só acreditarei no discurso quando a ciência me revelar que está, de fato, acontecendo”, analisa Nobre.

E há, sim, outro modelo de crescimento econômico na Amazônia que não inclui devastá-la: é a economia de floresta em pé. “Hoje, a Amazônia exporta matéria muito primária: minério de ferro, madeira e carne. A economia de floresta em pé, baseada em produtos de alto valor potencial, é muito poderosa: já há identificados cerca de mil produtos naturais, sendo 300 profundamente estudados em termos de adensamento agroflorestal”, afirma Nobre. “O açaí é um exemplo: movimenta atualmente quase o mesmo montante da madeira, que é quase toda ilegal, cerca de dois bilhões de dólares/ano (carne: 5 bi/ano). Em segundo, vem a castanha-do-pará. E há muitos outros: guaraná, andiroba, copaíba, pau-rosa…”, cita. “Não existe nada que impeça uma política pública que incentive a economia de floresta em pé. No papel, há subsídios governamentais para isso, mas nunca são implementados.”

Ética: a questão relegada ao silêncio

Criação padrão de porcos: assim vivem os animais que comemos (Foto: Reprodução)

“O que torna a sina dos animais de fazenda domesticados particularmente difícil não é exatamente o modo como eles morrem, mas, acima de tudo, o modo como eles vivem. Infelizmente, os humanos podem causar grande sofrimento aos animais de fazenda de várias maneiras, mesmo quando asseguram sua sobrevivência e reprodução. A raiz do problema é que os animais domesticados herdaram de seus antepassados selvagens muitas necessidades físicas, emocionais e sociais que seriam supérfluas na fazenda dos humanos**. Os agricultores, rotineiramente, ignoram essas necessidades sem sofrer por isso nenhuma punição no âmbito econômico. Eles prendem os animais em gaiolas minúsculas, mutilam seus chifres, caudas e bicos, separam mães de crias e seletivamente criam monstruosidades. Os animais sofrem imensamente, embora continuem a viver e se multiplicar.”

As palavras precisas sobre a pecuária moderna são de Yuval Noah Harari, em seu livro Homo Deus — Uma breve história do amanhã. Harari, PhD em história pela Universidade de Oxford, dedica várias páginas de sua obra ao tema amplamente enfiado debaixo do tapete da sociedade: o modo como tratamos os animais que nos servem de alimento.

Abate: imagens que não queremos associar com o hambúrguer que comemos (Foto: Al-Kabeer)

Esqueça as imagens idílicas das embalagens: a vaquinha leiteira não pasta feliz no campo, o porquinho não vive solto, a galinha não sai ciscando pelo quintal.

A realidade da vaca é tomar hormônio por boa parte do ano, para continuar lactando, enquanto é separada de seu bezerro em poucas semanas (o final dele, se for macho, é virar vitelo; se for fêmea, é ser emprenhada o quanto antes para produzir leite) e ordenhada várias vezes por dia por máquinas de sucção.

A realidade do porco é viver em baias de cimento tão pequenas que, por vezes, a porca não consegue nem ficar de pé para amamentar.

A realidade das galinhas poedeiras é passar a existência numa gaiola menor que uma folha de papel, ter o bico cortado para não machucar as outras devido ao estresse, ingerir antibiótico na ração para não morrer “antes da hora”.

“Mesmo que tivessem boas condições de vida, a genética deles está transformada de tal forma que são animais inviáveis do ponto de vista de bem-estar. É uma existência sofrida”, diz Cynthia.

99% dos ovos que estão à venda são provenientes do sistema de bateria, no qual galinhas vivem amontoadas, sem espaço nem para abrir as asas, por cerca de dois anos (Foto: Reprodução)

Vida miserável em ambientes superpopulosos, excesso de antibióticos e promotores de crescimento (em alguns casos, hormônios), alimentação à base de grãos cultivados com grande carga de pesticida: esse cenário não poderia produzir — e não produz — animais saudáveis. Nem para eles, nem para quem os consome.

“Está mais do que comprovada a relação do excesso de consumo de proteína animal ao aparecimento de doenças crônicas como as cardiovasculares, diversos tipos de câncer, diabetes e obesidade. No universo científico, há consenso quanto à importância de se ingerir muito mais vegetais do que animais: as pesquisas são abundantes nesse sentido. Porém há um descompasso entre o saber científico e a prática profissional”, pontua o médico Luiz Fernando Sella. “A medicina ser tão desconectada da nutrição é um absurdo.”

Exemplo do efeito cascata gerado pelo método industrial de produção de animais de corte está na gordura da carne, aquela parte que muita gente saliva de prazer só de pensar. Melhor pensar duas vezes. “Os pesticidas organoclorados se acumulam na gordura do animal. Quando ingerimos essa gordura, ingerimos também o resíduo do pesticida”, diz Dr. Sella. Os organofosforados e carbamatos são compostos químicos amplamente utilizados na agropecuária como inseticidas, no controle de pragas em plantações e de parasitas em animais.

Transporte de leitões: amontoados, tratados como carga (Foto: Reprodução)

Outro fator de alerta decorrente do sistema intensivo de criação é a crescente resistência a antibióticos — por parte dos humanos e dos animais. A maioria dos animais criados para consumo (principalmente galinha, porco e salmão) recebe rotineiramente doses de antibióticos e outros compostos com atividade antibacteriana (como quimioterápicos) para garantir sua sobrevivência e rápido ganho de peso. Alguns desses medicamentos são os mesmos recomendados a humanos. A administração excessiva faz com que as bactérias, em vez de morrerem, se adaptem ao “veneno”, evoluindo para bactérias super-resistentes.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, se ações urgentes não forem tomadas, entraremos em breve numa era “pós-antibiótico”, na qual uma simples infecção poderá ser fatal.

O pânico da falta de proteínas

As duas questões mais frequentes diante da constatação de que alimentos derivados de animais não são assim tão benéficos para a saúde humana nem para o meio ambiente são: “Isso é besteira, somos carnívoros por natureza!” e “Então de onde vou tirar minhas proteínas?!”. Vamos por partes.

Parte 1: “Isso é besteira, somos carnívoros por natureza!”

“Ah, eu faço dieta paleo porque é a dieta ‘natural’ do ser humano.” Não, não é. O homem evoluiu como coletor-caçador, conseguindo a maior parte de seus nutrientes de plantas (legumes, verduras, tubérculos, grãos e frutas). A caça acontecia ocasionalmente — eles não tinham um estoque de pernil de mamute no freezer nem entrecôte de bisão na geladeira da caverna. Não se consumia carne, leite e ovos na quantidade que consideramos normal na atualidade. Portanto, sim, somos onívoros, mas, evolutivamente, a dieta humana sempre foi mais vegetal do que animal.

A cientista e bióloga Cynthia Paim esclarece: “Temos hoje uma situação muito distinta daquela em que nossos antepassados viveram. No passado, as populações humanas viviam em ambientes onde a diversidade e disponibilidade de alimentos era muito limitada. Para essas populações, expostas à escassez alimentar e a deficiências nutricionais, o consumo esporádico de um determinado alimento (como a carne de outros animais) certamente pode ter sido benéfica. Atualmente, no entanto, a maioria das sociedades urbanas tem acesso a uma grande diversidade de alimentos (legumes, cereais, verduras, frutas, sementes e outros cultivos) que permitem a adoção de uma dieta balanceada e completa, rica em proteínas, ferro, cálcio, zinco, vitaminas e outros nutrientes, sem a necessidade de consumo de alimentos de origem animal”.

E no tocante à segurança alimentar, ela é maior hoje do que no passado? Em geral, sim, mas a inadequação no manejo dos bichos e suas condições de vida acarreta outras complicações. Segundo o estudo Mapping of Poverty and Likely Zoonoses Hotspots, do International Livestock Research Institute, em nações em desenvolvimento, 13 zoonoses provenientes de porcos, galinhas e bois estão associadas a cerca de 2,4 bilhões de casos de infecção humana e mais de dois milhões de mortes todos os anos.

Parte 2: “De onde vou tirar minhas proteínas?!”

“Não existe nenhum nutriente sintetizado pelos animais que seja essencial para os humanos: os animais são meros acumuladores. E de onde eles tiram seus nutrientes? Da comida, que é vegetal. Então podemos pular a etapa animal e ir direto na fonte. Todos os aminoácidos essenciais — aqueles que humanos não produzem — também não são produzidos pela vaca, porco e galinha. Eles são resultados da fotossíntese, do oxigênio do ar e do carbono do solo”, explica a nutricionista Alessandra Luglio, especialista em longevidade. “O ser humano está comendo muito mais proteína do que precisa. Quando se tira ou diminui a carne da dieta, não se exclui a proteína, simplesmente deixa-se de consumir o excesso.”

Impossible Burger: a startup de carne vegetal teve investimento milionário de Bill Gates 
e já vende, nos EUA, seus hambúrgueres que até “sangram” (Foto: Divulgação)

Então quer dizer que não é só carboidrato e gordura que, em demasia, fazem mal? “A ingestão excessiva de proteínas leva a estresse metabólico e acidose metabólica. Toda acidose gera inflamação e toda inflamação ocasiona doença crônica”, alerta Alessandra. “O excesso de proteína se acumula no fígado. O principal subproduto de sua metabolização é a amônia. A amônia é transformada em ureia, que gera acidificação do sangue. No meio ácido, as enzimas não funcionam. O corpo, para equilibrar a acidez, retira cálcio dos ossos, que libera bicarbonato de cálcio, o que leva a problemas ósseos”, explica a nutricionista.

Interessante também atentar para a alegada falta de ferro numa alimentação com pouca ou nenhuma proteína animal. Alessandra esclarece que “o excesso de ferro heme — presente no músculo e carne dos animais — é um ferro extremamente oxidativo e não é o mesmo presente em folhas escuras, sementes e algumas leguminosas”.

“De onde vou tirar minhas proteínas?!” Da chia, ervilha, feijão, favas, lentilha, soja (tofu, edamame, leite de soja, missô etc.), grão-de-bico, gergelim, linhaça, semente de girassol, semente de abóbora, quinoa, nozes, amêndoa, castanha-de-caju, spirulina, arroz integral, cevada, trigo, aveia, amaranto, quinoa, brócolis, escarola, agrião, espinafre, couve, abacate, caju, avelã, macadâmia… Ou seja: em verduras de folhas escuras, cereais integrais, leguminosas e oleaginosas***.

“A American Dietetic Association afirma que a dieta vegetariana é adequada para todos os ciclos da vida, desde o bebê até o idoso. Se for planejada e variada, é perfeitamente saudável”, diz Dr. Sella.

Diversos estudos científicos vêm sendo feitos no sentido de descobrir como alimentar a crescente população mundial diminuindo a pegada ambiental causada pelos animais. Um dos mais recentes, que trabalha com um cenário hipotético, foi realizado em conjunto pela Loma Linda University, Radcliffe Institute for Advanced Study (Harvard) e Department of Forest Ecosystems and Society, da Oregon State University, e intitulado Substituting beans for beef as a contribution toward US climate change targets (“Substituindo carne por leguminosas como uma contribuição para as metas de mudança climática dos EUA”). Os “resultados demonstram que substituir carne por leguminosas poderia aumentar de 46% para 74% as reduções de gases de efeito estufa necessárias para atingir a meta norte-americana até 2020. Essa mudança também livraria 692.918 km² de área voltada à plantação de alimentos para animais”.

Não são somente cientistas que estão empenhados em resolver a equação gosto humano pela carne X menos impacto ambiental X ética —- alguns bilionários e empresas também estão. Bill Gates (fundador da Microsoft), Richard Branson (dono do grupo empresarial Virgin) e a Cargill investiram cerca de 22 milhões de dólares na Memphis Meats, startup que produz em laboratório carnes de vaca, frango e pato através de células animais. Bill Gates também é investidor da Impossible Foods, empresa que já comercializa, em dezenas de restaurantes norte-americanos de primeiro time (como o Momofuku Nishi, do chef David Chang, em Nova York), seu hambúrguer 100% com sabor e textura de carne — que até sangra, devido ao uso de uma espécie modificada de soja. 

E depois de tudo isso…

Dados e evidências para a diminuição do consumo de derivados animais não faltam. Contudo a grande maioria das pessoas ainda reluta em aceitar isso. Curioso, não? Cientistas escoceses também acharam, e por isso foram pesquisadas as razões de tanta reticência. O estudo Eating like there’s no tomorrow: public awareness of the environmental impact of food and reluctance to eat less meat as part of a sustainable diet (“Comendo como se não houvesse amanhã: conhecimento público do impacto ambiental da comida e a relutância em comer menos carne como parte de uma dieta sustentável”), realizado em 2015 pelo Public Health Nutrition Research Group da University of Aberdeen, no Reino Unido, entrevistou mais de 1.500 pessoas na Escócia. Suas considerações finais dizem tudo: “Três temas dominantes relacionados ao consumo da carne emergiram da análise: 1. Falta de consciência da associação entre consumo de carne e mudanças climáticas; 2. Percepção do consumo pessoal da carne influenciando minimamente o contexto global de mudança climática; 3. Resistência à ideia de reduzir o consumo pessoal da carne”.

Pois ainda achamos que nada tem a ver conosco, individualmente. Mas os fatos estão aí para nos desmentir. Por completo.

Fonte: Vai se Food  

NOTAS DO INSTITUTO NINA ROSA

  1. * O texto é de setembro de 2017 e, portanto, alguns dados estão desatualizados. Mas o reproduzimos aqui porque a realidade de hoje não é muito diferente (no geral, está até pior). A mensagem permanece, assim como a urgência ainda maior em tomarmos uma atitude. A carne ainda é fraca, como dizemos numa página aqui no site, onde trazemos alguns dados compilados de 2022, em âmbito nacional — veja aqui. Uma coisa boa que aconteceu de 2017 para cá foi o avanço da tecnologia nas citadas carnes vegetais. Hoje já existem diversas marcas disponíveis não só em restaurantes, mas principalmente em supermercados, inclusive no Brasil.
  2. ** Na verdade, é mais que isso: já está provado que os animais não humanos são sencientes, ou seja, sentem dor, medo, alegria, amor etc. tanto quanto os animais humanos. Leia aqui.
  3. Os estudos citados no texto falam em “redução do consumo de carne” como uma solução para a diminuição dos impactos da pecuária no meio ambiente e no planeta. Mas nós, da causa animal, defendemos o fim do consumo de carne e qualquer outra parte tirada de animais, seja para alimentação (leite, ovos e mel), seja para vestuário (couro, lã, pele, pena, seda), seja para qualquer outro fim. 
    Reduzir o consumo significa, ainda que em escala menor, a continuidade da exploração e sofrimento de seres inocentes que só querem viver suas vidas em paz e liberdade como todos nós. Mesmo que fossem menos animais, ainda assim seriam vidas destruídas. Por isso, o que realmente precisa ocorrer é a completa libertação animal: que as pessoas finalmente se conscientizem — seja se colocando no lugar desses animais, seja se dando conta de que a dieta vegetariana é não somente possível, mas também a melhor para a saúde e até mesmo em sabor — de que animais não são nossos “alimentos” e que bois e vacas não são meros “bovinos”, assim como porcos não são simplesmente “suínos”, apenas para citar alguns termos massificados pela indústria da carne para despersonalizar esses seres sencientes e tratá-los como produtos de consumo. E que a tecnologia continue trabalhando a favor dos animais, como na produção de carnes vegetais e até — ainda em fase incipiente em 2024, mas já mencionado no texto acima — carnes sintéticas, para que aqueles que rejeitam a ideia de serem vegetarianos possam continuar satisfazendo seu paladar, mas sem fazer mal a ninguém.
  4. “A American Dietetic Association afirma que a dieta vegetariana é adequada para todos os ciclos da vida, desde o bebê até o idoso. Se for planejada e variada, é perfeitamente saudável.” Essa afirmação pode dar a entender que a dieta vegetariana tem riscos se não for planejada e variada. Na verdade, qualquer dieta deve ser planejada e variada; num mundo ideal, todos deveriam ter acesso não só a acompanhamento médico, mas também acompanhamento nutricional, independentemente do tipo de alimentação — vegetariana (“vegana”), ovolactovegetariana ou onívora.
  5. *** Lembramos que amendoim também é uma boa fonte de proteína vegetal.

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